terça-feira, 24 de setembro de 2013

Bling Ring, "cultura de marca", Hip-Hop, ostentação, autoafirmação


Se gosto não se discute, tudo bem, mas pode-se questionar – só pra saber como levar adiante um debate – que visão cada um tem das funções da arte, já que trata-se de algo mais objetivo. Qualquer mente sã sabe que a arte pode causar prazer, educar, manipular, estimular, politizar, deprimir, etc. Mas qual seria sua função primeira? Minha opinião: representar, o que quer que isso signifique. com todo e qualquer verbo possível do vernáculo como consequência

Em resumo (porque não entrarei nesse tópico por ora): para mim, não acho que eu deva desprezar o Emicida músico apenas porque o eu-lírico de Trepadeira é machista, mas sobretudo se eu julgar tal obra musicalmente ruim e incoerente (embora eu talvez possa desprezar o Emicida pessoa pela sua escolha em compô-la, dentro de um contexto e da proposta e postura política desse artista). Também não vejo porque parar de escutar Wilson Simonal por causa do seu suposto conluio com os ditadores; ou parar de ler Borges, por ele ter supostamente declarado que os negros não deram nenhuma contribuição artística efetiva para a humanidade. Certamente devo admitir que essa minha benévola visão, creio eu, é muito mais fácil de sustentar por eu não ser uma mulher e não saber uma sensação mais plena do que é ser chamado de “biscate” e merecer uma “surra de espada de são Jorge” ou um “chá de comigo ninguém pode” por ser uma “trepadeira”.

Mas, se Emicida errou em lançar a machista Trepadeira, Chico Buarque pode ter errado também em lançar músicas que estereotipam e limitam a mulher enquanto ser submisso, obcecado por paixonites enquanto única razão de viver, à mercê das fortalezas masculinas, atadas à frágil ilusão de que são fortes (O meu amor? Não sonho mais? Atrás da porta? Olhos nos olhos?). O senso-comum diz que Chico Buarque é o grande e definitivo representante da alma feminina na música brasileira – dá pra vislumbrar algo mais machista que isso? Sem querer parecer purista, mas por que o “grande representante” seria um homem?

Percebe-se, diante disso, como é delicado (e ainda mais nos dias que correm), falar sobre classes, etnias e gêneros historicamente oprimidos. O que dizer, então, do outro lado? Como diabos sentar para assistir a um filme chamado Amigas com dinheiro? O título – que, pasmem, foi traduzido corretamente – já dá um embrulho no estômago; e o longa, dirigido por Nicole Holofcener, nem sequer é uma sátira! Não! É apenas um retrato das angústias da classe média! O ímpeto em considerar esse filme uma bosta é quase irrefreável; a ânsia em julgá-lo irrelevante (tanta desgraça acontecendo no mundo!) e revoltar-se com o maldito “mimimi” de pessoas ricas (frescura!) é voraz. Porém, se anteriormente eu atribuí à arte uma função tão generosa, não seria digno trair-me: não posso dizer que Amigas com dinheiro é ruim só porque trata, com simpatia, de um tema supostamente insípido e ridículo. Para a minha sorte, contudo, tenho a atuação de Jennifer Aniston para criticar, bem como o grotesco e inverossímil final da trama... ufa!

As amigas: Joan Cusack, Jennifer Aniston,  Frances McDormand e Catherine Keener.

O novo filme de Sofia Coppola está imerso em contexto semelhante. Bling Ring – a gangue de Hollywood conta a história real de jovens que roubavam pertences de celebridades em suas casas. São elementos irresistíveis para desprezar sua realização: Hollywood, celebridades, vida fútil, consumismo, drogas, instagram. Claro está que a tentação nasce não dos elementos em si, mas por eles estarem representados sem, aparentemente, teor crítico, sátira ou caricatura. É um retrato curioso, íntimo e sem dramalhões – é de Sofia Coppola que estamos falando, caramba! É a valorização da sugestão, é o estímulo à auto-construção da ironia e da criticidade do espectador.  Quer algo mais honestamente artístico que isso? Reconheço que, em termos didáticos, sugestão e self-service crítico podem não ser tão efetivos (Picasso é mais "didático" que Miró?), mas, bolas, é o estilo da cineasta. O filme de Coppola tem sido atacado por retratar tal cenário sem uma visão crítica contundente (leia-se “visão crítica dada de bandeja, escarrada, no pior sentido Lars-von-Trierniano, Iñarrituniano ou Aronofskyano da coisa), mas, pelas boinas do Godard, é da diretora de Encontros e Desencontros que se trata! Para que raios ela vai fugir do princípio de representação crítico-artística dela para se adequar a um padrão que muito provavelmente ela despreza?

Emma Watson: o motivo real de 85% das pessoas que assistiram ou pretendem assistir Bling Ring.

Todos esses comentários, num blog sobre hip-hop, serviram de introdução para dizer que: a minha realidade atual é a do interior da Bahia, nordeste brasileiro, e já conversei com ou observei diversas pessoas de algumas partes do país (não todas), e devo dizer que, por ora, o Brasil tem uma cultura muito menos metonímica do que os EUA.

Bom, o que é “cultura metonímica”? 

Sabe aquela coisa de chamar toda esponja de aço de Bombril? Toda lâmina de barbear de Gillete? Todo doce em barra, seja de leite, coco ou amendoim, de cocada? Então. Mas enquanto aqui comprime-se todas as variações para um nome, lá nos EUA o processo se dá em sentido inverso. Tal síndrome, catapultada pelo capitalismo, fatalmente ganharia ares megalômanos no berço do imperialismo moderno. É a cultura da marca, alimentada pelo consumismo: quanto mais nomes de marcas soubermos, tanto melhor, e quanto mais dissermos “Estou de Calvin Klein branca” ao invés de “Estou de cueca branca”, mais apropriado será. Há quem reconheça, através de um áudio, se aquele saxofone é de Coltrane ou de Coleman Hawkins; há quem, ao comer um pouco de feijão, diga se tem sal, folha de louro ou pimenta do reino no tempero. Os jovens de Bling Ring reconhecem, só de olhar – e nem precisa ser tão perto a ponto de ver o logotipo –, se aquela bolsa é Louis Vuitton ou Alexander Mcqueen, se aquela bota é Louboutin ou sei lá que diabos.  

Como sofisticada e atenta cineasta que é, Coppola explorou uma trilha sonora que tivesse relação com essa realidade, e a escolha de várias canções do gênero hip-hop é certeira. A música dos créditos finais, Super Rich Kids, é tão fiel ao filme que parece ter sido feita pra ele, muito embora saibamos que o disco de Frank Ocean foi lançado antes. Temos também Kanye West, Rick Ross e Lil Wayne, dentre outros.


Um dos princípios do rap parece ser a liberdade em versar sobre muitas coisas, mas, mais especificamente falando, tratá-las com a familiaridade da referência e da metonímia. Se referir a um objeto pela marca dá a entender que você tem intimidade com ele. E o que estaria por trás dessa necessidade em demonstrar intimidade com tal produto? Enquanto o pessoal do Bling Ring idolatrava a vida das super estrelas, ao ponto de memorizar até mesmo em qual evento uma atriz usou o vestido X, na cultura hip-hop norte-americana, predominantemente negra, tornou-se comum referir-se às marcas para denotar uma tentativa, velada e explícita a um só tempo, de auto-afirmação e de manutenção de uma auto-estima historicamente esmagada pela classe dominante - na selva americana todos querem comprar, ter dinheiro. A compulsão dos “bling-ring” choca pela tal imbecilidade vazia da coisa, mas tão forte e rotineira por lá; a dos rappers, por sua vez, comove e até intriga: de onde eles tiram tanta força de vontade para se afirmarem no mundo, mesmo sendo tão massacrados e discriminados ao longo dos séculos? No subgênero gangsta rap isso é mais presente ainda - na verdade é uma regra. E aí voltamos à história de como apreciar Amigas com dinheiro: em variações como gangsta rap ou funk ostentação, temos muitas pessoas que não lhes julga artisticamente valiosos por causa de musicalidade/liricismo, mas também temos, acreditem, muitas, mas muitas e muitas pessoas que nem sequer os qualificam como música apenas porque suas letras falam de ter carros, jóias, mansões, comer putas e rebolar poderosamente para expulsar as recalcadas.


Aqui no Brasil a cultura da marca ainda está engatinhando. O primeiro grande “marcador” entre nós foi o carro: volta e meia alguns nomes são carimbados no nosso imaginário, como Hilux, Chevette, Corolla ou o famoso Fusquinha. Outros nomes recorrentes são Ray-ban (óculos escuros), Lacoste (camisa) e a mistura Red Bull com Red Label (bebidas). Uma marca que tem feito muito sucesso, em se falando de citações, é a Louis Vuitton, que ultrapassa as fronteiras do rap, chegando ao funk ostentação (Mr. Catra, MC Daleste) e ao forró (Aviões do Forró), ou ainda o pagode romântico (Thiaguinho). Talvez por nossa tradição com o futebol, a cultura de marcas de tênis é bem presente por aqui (claro que não tem nada a ver, mas sei lá). Não sei se no eixo Rio-São Paulo essa febre está em graus mais “avançados”, mas, pelo menos aqui em Feira, posso dizer que é incomum encontrar alguém de estilo metonímico, e há mesmo quem considere risível quando se encontra uma pessoa que saiba tantos nomes de marcas de roupas e acessórios (tenho um caso real disso, mas não posso citar nomes).

Ainda assim, dá pra perceber, em muitas dessas músicas nacionais, que, ainda que elas utilizem os nomes das marcas, estas não são inseridas de maneira “indiferente”, isto é: em geral, o uso desses nomes torna-se o mote da letra e delineia sua estruturação lírica. É o exemplo de Poderosa (Só bebe tequila e chandon na taça / Essa mina é chapa quente (...) / No pulso um alt brait / Ouro 18 quilates / Tem Armani, black blue o perfume é o 212) e As minas do kit (Se liga só no naipe dessas minas / forga de camaro, audi e capitiva / bota um Puma Disk no pé / que delicia de mulher / Tem Air max, Flack Jacket / tem lui lui, tambem tem Juliete / bolsa da Louis Vuitton, vermelho combina o batom), de Nego Blue; ou Pára Tudo (não sei de quem é, mas conheço na versão de Aviões do Forró): Só ando de Louis Vuitton / De Ray-ban ou de Triton / Sou vitrine de bacana / Com minha Dolce Gabanna / Na balada vou de Prada / Tô sempre descolada. Os nomes de marca não são adereços da letra, cujo tema central seria outro, mas o próprio tema. Como nos EUA o bicho já vem pegando há muito tempo, ninguém se dá ao trabalhar de pôr em primeiro plano nomes de marcas, porque o consumo já se tornou uma faculdade humana – as marcas estarão sempre lá,são tatuagens e cicatrizes.

A familiaridade é tanta que criam até apelidos e corruptelas para as marcas. Se aqui no Brasil, no século XXI, ainda pode parecer estranho falar apenas “Louis Vuitton” (em Mulher do Poder, por exemplo, Mc Pocahontas canta É salão de beleza, roupa de marca, sandália de grife no pé / Bolsa da Louis Vuitton, sonho de toda mulher – não só não escolhe uma marca de roupa ou de sandália para substituir justamente os termos “roupa” e “sandália”, como ainda, ao falar da Louis Vuitton, opta por manter o termo “bolsa”, ao qual “Louis Vuitton” deixa de ser objeto para tornar-se adjunto), lá, nos EUA, desde a década de 80 que eles se referem ao conhaque Hennessy como apenas – e carinhosamente – Henny. Ninguém lá chama Mercedes-Benz de Mercedes-Benz, mas apenas Benz. Nesse sentido, muitos dos raps do N.W.A., Snoop Dogg, Nas, Notorious B.I.G., Jay-Z, 50 cent, dentre outros, se aproximam da estética “Alegria Alegria”: eu tomei uma coca-cola, não um refrigerante, mas uma coca-cola, e a minha música não fala sobre a coca-cola, mas seu nome – sua marca – está lá.

The Nototious B.I.G.: um dos primeiros grandes ícones da imagem "rapper famoso e rico". Seu processo de autoafirmação - sou negro, sou gordo, sou feio, sou rico e sou foda - é de um carisma que continua insuperável.

Carros e roupas e bolsas são até naturais a nós, brasileiros; mas, e a cultura de armas, por exemplo, que lá sempre foi feroz? Se aqui eu sei no máximo o que é um Três-oitão ou uma 9mm, lá todos aprendem desde cedo a diferenciar uma Glock, uma AK-47, uma Beretta ou uma Mac-10. Você acha que um Camaro amarelo é o tal? E um Range Rover? Lexus GS3, Sentra, Jaguar, Bugatti, Hummer? Você vem de Louis Vuitton? Que tal Fendi, Burberry, Ralph Lauren, Hermes? Você ainda tá nos relógios à prova d´água da Casio? Putz! Eu só lhe dou um Rolex, um Seiko e um Hublot. Se você acha que entende de variedades de bebida ao dizer que gosta de "licor ou gim", eu não digo licor ou gim, eu digo Old English 800 ou Tanqueray.

Abaixo, traduzida, segue a música supracitada Super rich kids, retirada do site rapevolusom. Vale a pena conferir.

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