domingo, 15 de dezembro de 2013

[música legendada] Hurt me soul (Lupe Fiasco)


Mais uma tradução do Lupe Fiasco, do poderoso disco Food & Liquor. Nesse fim de ano eu e os parças estamos meio sem tempo pra atualizar o blog, mas ano que vem vamos seguir adiante no projeto.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

[música legendada] Kick, Push (Lupe Fiasco)


Para a sorte historiográfica de muitos artistas, o maior de todos eles - em todos os sentidos e em todas as artes -, surgido nos últimos 15 anos, despontou antes do século XXI começar. Logo, é só em rankings do tipo "Os melhores surgidos no século XXI" que ele pode ser passado para trás. Seu primeiro álbum não muito interessante foi lançado em 96, mas é com o seu clássico de 99 que ele vem à tona com força. Eu tô falando do Slim Shady LP - eu tô falando do Eminem.

Mas a música traduzida de hoje é do Lupe Fiasco. Em se tratando de estréias dos anos 2000, tivemos grandes nomes como Kanye West e 50 cent, além de Sabotage aqui no Brasil, e é curioso como na cultura hip-hop existe um quase consenso no fato de que muitos álbuns primeiros costumam ser, em geral, os melhores de seus respectivos rappers. Desde o N.W.A. na década de 80, passando por Dr. Dre, Snoop Dogg, Nas, Notorious B.I.G. ou Lauryn Hill na década de 90, os casos são muitos. Na primeira década deste século, os próprios supracitados não fogem à regra (à exceção de West - é impossível decidir qual seu melhor trabalho), e Fiasco é um deles.

Natural de Chicago, Lupe Fiasco parece manter uma razoável "tradição" aqui - a tradição do chamado rap consciente. Aquele rap que Barack Obama respeita. Aquelas canções de rap que criticam temáticas pilares no estilo gangsta: apologias a drogas e violência, misoginia, homofobia, etc. Common (já traduzido aqui), grande inspiração de Fiasco, é de lá também - desde meados de 94 que ele já criticava o gangsta shit. Sem falar de Kanye West, um dos primeiros defensores do fim da homofobia na cultura hip-hop, e um cara que fez um hoje clássico chamado Jesus Walks (com o curioso argumento de que "as pessoas tão falando demais de drogas, dinheiro, poder, sexo, precisamos falar mais de Jesus") - apesar de ter crescido em Detroit, nasceu em Chicago também.

Dizem que Fiasco fala por metáforas. Nessa faixa, que trata aparentemente da vida de jovens skatistas, poderia-se verificar um significado implícito. Muito provavelmente, talvez, o mundo do tráfico. De como ele começou ainda criança, vendo o movimento nas ruas, de como se deu mal no começo, de como pegou o jeito e de como aquilo o fascinou e o fez subir à cabeça. No começo, Fiasco diz "Eu dedico essa aqui / Pra todos os parceiros fazendo "grind" lá fora / Tá ligado no que eu falo? / Legal e ilegal", e esse último verso nos faz crer que a metáfora é de fato clara. O grind é uma manobra do skate que consiste em deslizar em barras de ferro ou similares. No clipe, no momento em que Fiasco fala essa parte, vemos os parceiros atrás de grades verticais, o que remeteria à prisão - outra dica que seria, em tese, infalível. Além do mais, ao final de cada uma das três partes da música Fiasco canta sobre a postura contra o seu "hobby" representada por três elementos: primeiro os "incomodados vizinhos"; segundo, o segurança de um "lugar estranho"; e, por fim, os policiais.

Apesar disso, muitas coisas, sobretudo o clipe, pesam contra esse duplo sentido e fazem crer que, no final das contas, é só uma música sobre skatistas mesmo. Ainda que o seja - e o é muito bem feita  -, fica óbvia a reflexão sobre as pequenas opressões do dia-a-dia nesses ambientes - e "opressão" é um termo pesado, mas, nesse caso, insubstituível. Pode não ser uma metáfora no estilo "duplo sentido", mas não deixa de sê-la no estilo "para além do que se vê".

Vale frisar a pequena homenagem a Nas, outra grande referência de Fiasco, no trecho "...the world was theirs" (O mundo era deles) - naturalmente, trata-se de uma alusão ao The World is Yours, do Illmatic.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[resenha de mixtape] Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L (Don L)



Em 24 de janeiro deste ano completou-se 10 anos de morte do maior rapper brasileiro de todos os tempos até então, Sabotage. A história do hip-hop no Brasil é recheada de vários nomes, mas, em termos de fenômeno – vendas, mídia, representatividade e/ou qualidade –, ela pode ser dividida, até então, em 1)Racionais MC’s 2)Gabriel O Pensador 3)Sabotage 4)Emicida/Criolo (muitos desconsiderariam o item 2).

O fato é que têm surgido cada vez mais nomes e produções de peso, e, consequentemente, a grande pergunta com certeza não deixará de ser feita: quem seria o mais promissor MC brasileiro surgido na era pós-Sabota? Emicida tem tudo para abocanhar o troféu; meu palpite, inicialmente, seria MC Marechal – até que eu conheci o som de Don L, e agora estou numa dúvida cruel.

Don L é um rapper de Fortaleza que surgiu numa banda chamada Costa a Costa. A mixtape da banda lançada em 2007, Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, chamou bastante a atenção: era um “gangsta abrasileirado”, era um “’Sobrevivendo no Inferno’ mais infernal ainda”. Quando ouvi o hit Costa Rica, chamou-me a atenção o flow descolado deste MC, mas de um descolado que nunca ouvi em outro rapper daqui.

(Antes de dar seguimento ao texto, uma opinião mais respaldada que a minha: Daniel Ganjaman, que produziu Sabotage e Criolo, escreveu no seu facebook “Mixtape sensacional do Don L, o MC mais autêntico da atualidade. Gosto muito e recomendo!” – clique no link e comprove)

Autêntico, sim. E descolado. No sentido mais literal da palavra. Parece ter cola no seu flow – mas uma cola “descolada”. Sente-se a plasticidade da dicção, da pronúncia dos fonemas, o trabalho de alternância do tom, no qual mesmo o sussurro parece denso, cheio de polpa (na MPB brasileira só Jorge Ben canta desse jeito). O curioso é que nessa mixtape há uma faixa intitulada justamente Plástico. E em quase todas as faixas Don L utiliza autotune, recurso que dialoga contundentemente com seu flow.

O flow descolado (nesse sentido de “cola”, de deboche, tom superior, auto-estima vocal elevada à enésima potência) tem um pai: Jay-Z. E é certeza que Don L ouviu Jigga Man até não poder mais. Jay costuma explorar a densidade das vogais e das consoantes laterais (não à toa adora usar termos hispânicos, já que o espanhol é a língua que usa o L da maneira mais bela e sedutora). Don L (olha o “L” aí) também explora esse território e, além de Jay-Z, inspira-se na precisão diferenciada de Chico Buarque (ambos são influência confessa do rapper). Tal como Chico, a métrica de Don não é meramente linear – ela é circular, pois circula no todo lírico (tenham em mente Construção de Chico; aliás, qualquer uma de Chico). Poucas palavras são inseridas à toa nos versos – pensando bem, poucas sílabas. Exemplo: em Sangue é Champanhe, encontramos

Peça de marfim
Quadros raros tão requinte
E quando eu declaro tim-tim


Só ouvindo pra entender melhor, mas percebe-se aqui como, numa mesma palavra, a do 2º verso, ele aproveitou para rimar – com sílabas diferentes – com o 1º e o 3º verso, mantendo a rima maior que é a vogal “i” nasalizada.

Nos beats encontramos de tudo: rock, blues, jazz, slow jam, ritmos latinos, caribenhos, funk, soul. São estilos de vários lugares, de costa a costa. Esse é um rapper pra ficar de olho. E bem atento.



- - - - - FAIXA-A-FAIXA - - - - (baixe clicando aqui)

1) Morra bem, viva rápido

Eu vi a modelo sorrindo pra mim
O outdoor brilha
Cê não entende a fita ?
Nós tudo vive pra morrer mas luta pela vida

Tem gente declarando por aí no twitter que ainda não conseguiu ouvir a mixtape toda porque sequer consegue deixar de ouvir essa faixa. De fato, a melhor opção para introduzir esse trabalho. Muitos rappers – sobretudo os autênticos – costumam criar um mundo lírico próprio, afinal é basicamente a partir disso que se faz um flow. Um dos primeiros MCs a popularizar essa estética foi Snoop Dogg: uma de suas marcas registradas é soletrar nomes próprios (principalmente o dele, é claro) – S-N-O-O-P D-O-G-G (leia-se “S, N, Double O,P, D, O, Double G”). 

Em Don L temos marcas lexicais; volta e meia, nas letras, encontrar-se-ão termos como o verbo filma! (no imperativo, com exclamação), ou a frase nós contra o mundo (referência à “me against the world” de Tupac), ou plástico, ou gelo, ou denso. O colega Ederval chamaria isso de ressonância mnemônica.

2) Chips

Respira sem stress
Porque de cem, da vida, cê num entende nem dez
Ri do perigo comigo, cola minha hashtag
#foda-se

Uma estrutura que Don L costuma utilizar, e que não é muito usual na tradição do rap, é o refrão longo. A estrutura mais comum é a Verso 1 > Refrão (quatro versos) > Verso 2 > Refrão > Verso 3 > Refrão; volta e meia encontram-se refrões de 8 versos, mas em Don L muitos têm 12 e até 16 versos. E, muitas vezes, um Verso só [NOTA: para não confundir, o Verso com V maiúsculo se refere à estrutura musical, ao passo que o verso com v minúsculo se refere às linhas].

Curiosamente, há um rapper atual nos EUA trabalhando assim também, e que está bombando lá fora, que é o Kendrick Lamar (e eles até se assemelham, já que Kendrick também é da escola de Jay-Z). Mais curiosamente ainda: o flow em Chips dialoga com o de Bitch don’t kill my vibe, hit de Lamar.

3) Rolê dos loko

Eu num vim aumentar o drama, vim virar o jogo 
Eu nunca tive autorama, xeu brincar um pouco
Na pista real dos loko, com meus brinquedo novo

Quem produziu essa faixa foi a dupla Stereodubs, os mesmos caras que trabalharam com Flora Matos. Mais uma faixa na estrutura Refrão > Verso único > Refrão. Um som com uma pegada mais eletrônica, com um flow recheado de precisão e deboche. Não sei por qual motivo Don batizou a si próprio com tal apelido – Don L – mas, se tem alguma coisa a ver com a sonoridade da letra L, faz sentido, porque a maneira “cremosa” e fluida com que ele pronuncia essa consoante é realmente chamativa.

4) Doce dose

John Lennon vivo no caixão 
E o amor morto
Doses de ilusão, Yoko
Olha o que é ser leão no jogo
Pôr animais em extinção no bolso
Predadores tão a solto

Um blues-rock com participação de Felipe Cazaux, músico paulista radicado em Fortaleza. O estilo “ostentação requintada” segue firme. O hedonismo do eu-lírico de Don é descolado como seu flow e, por mais que a ideia de ostentação remeta à noção de “viver o presente de maneira inconseqüente”, neste caso temos uma peculiar postura do que poderia ser chamado de “ostentação diacrônica” ou “ostentação dialética”, pois o diálogo com o passado do sujeito jamais deve morrer.

Essa, na verdade, é quase uma regra entre os rappers (que tem sido muito distorcida no senso comum com a associação à suposta “pegada vazia e ordinária” do funk ostentação): tô na fama, e eu a desejei, mas tô com o pé no chão; tô rico, e eu corri atrás disso, mas não mudei. Kendrick de novo, em Now or never: A fool if I take it all for granted / A smart man if I keep my feet planted [Um tolo se eu virar as costas pra tudo isso / Um cara esperto se eu manter meus pés plantados].

5) No melhor estilo

Bota um drink do melhor no gelo prum dos melhores dos MCs 
Um trago de green pelas batalha que eu venci
Não batalha de free, nem tempo eu tive
De onde eu vim, cena do rap é a cena do crime

Rap no melhor estilo gangsta. Com beat de Papatinho da Cone Crew e participação de Terra Preta, Don L segue com suas referências indiretas aos seus mestres, ora claras ora sutis, seja 2pac (pra eu chegar assim, Maquiavélico – um dos nomes artísticos de 2pac era Makaveli), seja o trocadilho com a bebida Ice Tea e o rapper Ice-T.

Rappers costumam rimar em cima de nomes próprios e, é claro, nomes de marcas, em geral da cultura de massa. Há décadas atrás o Brasil ficava chocado com a rima de Caetano em Alegria Alegria: coca-cola com escola. Don L gosta muito de utilizar esse recurso (aqui temos “Miami” com “me ame”; na anterior temos “Yoko” com “morto”; mais tarde encontraremos “Coltrane” com “oh, quem...”).

6) Depois das 3

Ô, o que ela tem nesse olhos 
Que me lembra o que nem vivi
Tipo Ipanema em setenta
A gente contempla um transatlântico
Eu transo um som romântico, pornô, meio transa tântrica

E por falar em Caetano, o jogo de palavras e rimas no trecho acima é bem caetanístico. O refrão é cantado por Izabel Shamylla, outra cantora da cena local de Fortaleza. Um rap suave, com flow destilado também de maneira suave. Uma das minhas prediletas.

7) Plástico

Nove da manhã 
A casa de cabeça pra baixo
A sandália dela no quarto
Aquela da alça de plástico
Embalagens de aperitivo barato
Junto com a garrafa de vinho caro
De uma safra noventa e quatro

A música mais “autotuneada” da mixtape, com um beat provocativo. O romântico Don nunca é obsessivo, nunca é desesperado, o que causa um efeito de elegância: algo declaradamente intenso sendo retratado com equilíbrio. É a velha distinção entre erotismo e pornografia.

8) Me faz acreditar

Então esqueço o sonho que acordei me lembrando 
Pra lembrar dos sonhos que já tenho há vários anos
Quanto tempo eu tenho pra correr e a quanto?

Uma pequena faixa inserida no meio da mixtape com uma base instrumental completamente inesperada - flauta doce e percussões idílicas, na pegada Milton Nascimento – e letra igualmente inesperada. O refrão simplesmente é: Bom dia, muito obrigado! / Me faz acreditar!

9)  Slow Jam

A vida é fumaça, prima 
Se perde na brisa do ar se num tragar a fita
Escolho contigo o lugar pra te levar, firma?

Uma slow jam com batida de bossa nova gingada. Ao final, um aconchegante fraseado de metal.

10) Beira da piscina remix

A gente ouvia um blues no opala oito sete 
Mi casa era su…
Só mudou o CEP
Okay, mudei a placa
Mudei o carro
Mudei marca

Mas eu, num mudei nada

Beira da piscina é uma música do Emicida que conta com vocais de Rael da Rima no refrão. Esse remix é um bom exemplo da lírica circular que ele aprendeu com o mestre Chico. No trecho abaixo, temos:

A vista é bem louca hein, tem que respeitar / Ó, uvas na boca, flores jasmim
As curvas tão lindas, doggy style pra mim
E nada além disso / Ou talvez sim
Um brinco em safira
pro sol refletir


Ao ouvir essa parte, podemos perceber como ele mantém a métrica no tempo de 4/4 até introduzir o termo inglês “doggy style” (referência a Snoop Dogg) em tempo de 3/4, e, daí, canta os seguintes versos, destacados em vermelho, também nesse tempo, muito embora – faça o teste – eles caibam perfeitamente no tempo 4/4. Depois, finaliza o fragmento voltando ao 4/4 para encerrar o compasso, com a voz também “encerrada” (isto é, baixando o tom). Como em Chico, cada momento métrico da letra de Don precisa estar concatenado, para denotar a ideia de corpo lírico redondo.

11) Nem posso dizer

De tanto querer ser bom 
Misturei o céu e a terra
E por uma coisa à toa
Levei meus anjos à guerra

Os versos acima são de Cecília Meirelles – esta é a introdução da música. Se alguém não conseguiu ainda visualizar os ensinamentos do papai Jigga, eis talvez o melhor exemplo.

12) Caro Vapor

Uma noite tem que valer um verso, 
pra em outro dia, o verso valer a noite
A estrada já tem que valer a viagem 
porque o destino é sempre incerto

Aqui já podemos sentir o peso do maldito Kanye West, o maior beatmaker/produtor de hip-hop em atividade, além de grande rapper (resumindo: gênio). Pra brilhar como MC tem que ter auto-estima: E se eu não for seu rapper favorito / Eu provavelmente sou o favorito do seu favorito.

13) Denso

Hey chapa, essa gata ao meu lado é a ressurreição 
De Joana d’Arc cobrando pela Inquisição

Aqui Don L apresenta seus dois anjinhos da consciência: o primeiro, numa voz feminina sedutora e traiçoeira, é a Vida Premium, a qual o eu-lírico tanto deseja; o segundo é Nego Sub, que, com seu efeito de voz grave, alerta para Don que o preço é caro. Em dado momento, a voz da Vida Premium, para ganhar a treta com Nego Sub, alardeia: Olha como eu tô foda! Olha como eu tô foda!” (não sei o porquê, mas “tô” ao invés de “sou” realmente causa um impacto maior).

14) Cafetina seu mundo

Vô na malandragem, não na sorte 
Porque eu sempre soube quem matou Pixote

Já lançada como single antes, essa causou problemas de natureza autoral a Don, pois ele sampleou a música Everlasting Night do Black Keys. Ainda que tenha creditado, os donos dos direitos não quiseram nem saber e depois de algum tempo a música tinha sido excluída do youtube, sound cloud e sites afins. Rock com autotune.

15) Sangue é champanhe

A vida que pulsou forte 
Quando ela me apresentou a dose
Seduziu de lingerie tipo: Oh, fode!
Hotel unreal
Motel no love
Estourei champagne nela tipo blowjob

Essa fantástica música, com belo arranjo vocal de Flora Matos no refrão, é a única da mixtape que, até então, já tem videoclipe. E que videoclipe. Se você não gostou do estilo de Don L, ou se você sequer gosta de hip-hop, dê uma chance pelo menos a esse grande trabalho artístico. Dirigido por Erica Gonsales em parceria com a fotógrafa Autumn Sonnichsen (que já fez ensaios para Playboy, Trip), o vídeo mostra uma visão diferenciada e sensível da nudez feminina. [DE FATO, AVISO: NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 18 ANOS, O VIDEO CONTÉM CENAS DE NUDEZ]


16) Gasolina e Fósforo

Ei, Don ! Cê é bicho solto, hein! 
Não! Só disposto e em posto e em
Ponto pra queda ou pro vôo e em
Guerra e amor, cê vem?

Essa é uma das mais pesadas da mixtape. O personagem Nego Sub retorna para guiar Don e pô-lo em foco. Nego Gallo, integrante da banda Costa a Costa, também faz uma participação especial.

17) Enquanto acaba

E pelo espelho vejo: que bonito 
E depois do amor jogos de criança tipo
Adedonha
Nome de lugar
B! Barcelona!

Outra com participação de Flora Matos, e outra cujo clipe a ser gravado pode ser realizado pelas mãos milagrosas de Autumn Sonnichsen (em parceria também com Erica Gonsales). Um jazz para encerrar a mixtape cujo verso inicial é “O mundo jaz”.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

As 10 melhores Diss do Hip-Hop de todos os tempos segundo a revista Complex

Segue abaixo uma tradução da matéria da revista Complex sobre as 10 melhores tretas em forma de música no rap estadunidense, por Andrew Barber. Na matéria original são 50, mas coloquei aqui apenas as 10 primeiras. Muitas das letras já têm traduções disponíveis (basta clicar no link); das que ainda não se encontram, pretendo traduzir em breve para publicá-las aqui.

O que é treta? É quando sua mãe não está segura na rua?* Ou é, na verdade, o quinto elemento do hip-hop? Desde que Big Bank Hank, do Sugarhill Gang, pegou emprestado o caderno de rimas de Grandmaster Caz e usou suas letras sem creditá-las em Rapper’s Delight, MCs têm sido rivais por anos e anos.

O hip-hop é uma cultura construída em torno de machismo e fanfarronice – recuar ou perder uma batalha pode até ser prejudicial para a carreira de um artista. Com um simples deslize você pode acabar com uma passagem só de ida rumo ao ostracismo. Alguns MCs construíram carreiras inteiras procurando tretas com diversos artistas, enquanto outros tiveram suas carreiras destruídas em apenas algumas linhas. Mas o que começou com dois rappers simplesmente batalhando pela melhor rima transformou-se num grande negócio, com vídeos de paródias, shows previamente elaborados e álbuns inteiros gravados exclusivamente para as batalhas.

Prévias são constantemente lançadas para manterem os fãs entretidos enquanto os artistas se esforçam para encontrar maneiras originais e criativas de difamar seus adversários. Mães, mulheres e crianças têm sido envolvidas; e, na era do Youtube, um rapper, ao procurar briga, deve estar sempre com um cameraman ao lado. Assim, com as tretas sempre na moda, a Complex compilou as 50 melhores diss** de hip-hop para o seu consumo. Vegetarianos***, cuidado.

NOTAS

* Essas duas primeiras perguntas são versos da fantástica música What’s Beef, de Notorious B.I.G. (cliqueno link para ouvi-la com tradução).

** Diss é uma abreviação de “disrespect” (desrespeito). Na linguagem hip-hop é justamente a “materialização” da treta: uma música em que um ou mais rappers atacam um ou mais rappers. Aqui no Brasil não se traduziu o termo.

*** Trata-se de uma brincadeira com o termo original em inglês para treta, beef, cujo significado literal é carne (bife).

Alvo: Prodigy, Nas
Álbum: The Blueprint

Melhor trecho: Quatro álbuns em 10 anos, mano? Eu poderia dividir / Digamos que seja um álbum a cada dois anos / Dois deles foram merda / Um foi “Naaahh”, o outro foi o Illmatic / Isso é a média de um álbum bom a cada dez anos.

[NOTA: a piada do último verso consiste no fato de que, ao considerar apenas dois desses álbuns realmente bons, no fundo só o Illmatic é de fato dos grandes, enquanto o primeiro citado, provavelmente o It was written de 96, não chega a ser top de linha; daí, Jigga debocha de Nas e faz um trocadilho com o nome do rapper: Nas > Naahhh – uma maneira jocosa de dizer “nããaoo”].

Jay-Z e Nas tinham uma rivalidade de longa data e estavam engajados em uma luta de poder silenciosa durante anos, e os ataques permaneceram subliminares (um pouco) até que Jay-Z chamou Nas ao palco no Hot 97’s Summer Jam em 2001: “Perguntem ao Nas, ele não quer se meter com o Hov”. Nas, consequentemente, mordeu a isca e atacou Jay no seu freestyle único, o que levou Jay a gravar seu clássico Takeover.

A resposta de Jay foi trabalhada mais como um ensaio do que uma batalha de rap ao vivo, com Hov introduzindo o argumento, analisando os dados, levantando contra-argumentos e então concluindo. Prodigy, do Mobb Deep, foi atacado na segunda parte, mas isso foi completamente ofuscado pela treta de Jay com Nas. Em seus ataques a Prodigy, Hov focou na sua pequena estatura, nas poucas vendas e numa infame foto em que o rapper, então adolescente, está numa estranha pose de bailarino (Jay expôs essa foto no telão da Summer Jam de 2001).

A parte referente a Nas foi muito mais brutal, atacando a passagem decadente de Nas do topo da lista de MCs para um sujeito tão fraco que até seus guardas rimariam melhor que ele. Nas linhas finais, ele faz alusão a um suposto caso com Carmen Bryan, a mãe do primeiro filho de Nas. Muitos especularam que a carreira de Nas estaria acabada após Takeover, e alguns acreditam que Prodigy jamais se recuperou.
  
Alvo: Mobb Deep, Puffy, Junior M.A.F.I.A., Lil Kim, The Notorious B.I.G., Chino XL
Álbum: How Do U Want It [Single]

Melhor trecho: É por isso que eu comi aquela tua vadia, seu gordo filho da puta.

Reaproveitando o beat de uma música popular do oponente? Confere.  Alegando relações com a mãe do filho do oponente? Confere. Zombando do físico do adversário e chamando-o de imitador? Confere. Vídeo-paródia? Confere. Deixando seus parceiros entrarem em ação? Confere. Trocando em miúdos, 2pac aperfeiçoou e personificou a fórmula da diss em Hit em up, incorporando todos os elementos para sair vitorioso contra seus adversários.

No entanto, ao chutar o balde, Pac iniciou a transformação do que seria apenas uma luta de rimas numa guerra que acabou dividindo toda a nação hip-hop. O que começou como uma treta entre dois rappers (Biggie e 2pac) tornou-se uma batalha entre toda a Costa Oeste (cujo quartel-general era a Death Row Records) com toda a Costa Leste (Bad Boy Records), os principais rótulos  do hip-hop no momento. Isso enlouqueceu a mídia, que criou a famosa Guerra do West Coast versus East Coast, tornando-a rapidamente a treta mais divulgada e sensacionalista de todos os tempos.

Na esteira de Hit Em Up, dois dos maiores talentos do hip-hop (B.I.G. e 2Pac) seriam mortos (dois assassinatos que continuam sem solução), mudando a cara do hip-hop e das tretas para sempre. Esta batalha será sempre uma lembrança de que, se não forem levadas na esportiva, tretas de rap podem rapidamente tornar-se tretas reais, com conseqüências terríveis.
  
Alvo: Jay-Z
Álbum: Stillmatic

Melhor trecho: Eminem acabou com você na sua própria merda / Você é um pau-no-cu bufado / Você adora chamar atenção.

Após Jay-Z lançar Takeover, um gigante adormecido despertou em Nas  - era o chute na bunda que ele precisava para pôr sua carreira de volta nos trilhos.

Depois do clássico sample vocal “Foda-se Jay-Z”, um Nas muito mais venenoso irrompe, acusando “Gay-Z” de ser um Stan de Nas [referênciaao clássico de Eminem], e questionando Hov em seu uso excessivo de reciclagens de letras de B.I.G. Tão vicioso foi o ataque que o termo éter entrou para a gramática do hip-hop, e a música sem dúvida serviu para Nas reviver a sua poderosa e atemporal influência.

Alvo: Juice Crew, MC Shan, Queens, Marley Marl, Roxanne Shante
Álbum: Criminal Minded

Melhor trecho: Manhattan continua fazendo / Brooklyn continua na tiração / Bronx continua criando / E Queens continua na falsidade.

O Boogie Down Productions iniciou a treta com MC Shan e o Juice Crew em South Bronx e definitivamente terminou em The Bridge is over, o pesado golpe de misericórdia daquela que viria a ser conhecida como a “guerra de Bridge”. Repleta de tiradas clássicas, The Bridge is over foi lançada em resposta ao Kill that noise de MC Shan, com um flow bem ao estilo reggae de KRS-One, no qual ele afirma orgulhosamente que o hip-hop nasceu no Bronx. Depois disso Queensbridge permaneceu – a carreira de MC Shan, não.
  
Alvo: Jerry Heller, Ruthless Records, NWA
Álbum: Death Certificate

Melhor trecho: É um caso de dividir e conquistar / Pois você deixou um judeu quebrar minha turma.

Após Ice Cube deixar o N.W.A por causa de uma disputa financeira, sua ex-banda atacou-o nos álbuns 100 Miles & Runnin e Efil4zaggin, comparando Cube ao mais famoso traidor da história americana, Benedict Arnold. Cube respondeu com o extremamente visual No Vaseline, uma exposição das táticas e negócios obscuros de Eazy-E e Jerry Heller (o empresário do N.W.A.) cheia de insultos gays e raciais.

Possivelmente mais ofendidos do que os membros do N.W.A., ativistas e críticos de direitos civis fizeram fila para pintar Cube como homofóbico e anti-semita. O N.W.A. nunca respondeu à diss, e Dr. Dre deixou o grupo e a Ruthless Records logo depois, alegando também questões de compensação financeira.
  
Alvo: Luke, Tim Dog, Ruthless Records, Eazy-E
Álbum: The Chronic

Melhor trecho: Costumava ser meu parça / Costumava ser meu ás na manga / Agora eu quero bater com gosto na sua boca.

Com a fama construída em torno de controvérsias e tretas, a Death Row Records revolucionou a maneira como as diss eram gravadas e apresentadas ao público com Dre Day. É claro que rappers parodiavam outros em videoclipes antes, mas a Death Row investiu pesado nas tretas, elevando o nível da arte de batalhar. O clipe bombou na MTV e na BET e teve uma série de comediantes e atores retratando sua lista de inimigos.

Não era mais apenas sobre a música – o visual agora era igualmente importante. Dr. Dre e seu protegido, Snoop Doggy Dogg, responderam à diss de Luke (Fakin Like Gangsters) e Tim Dog (Fuck Compton), mas era o ex-parceiro de Dre, Eazy-E, o ponto central de Dre Day, música e vídeo, construídos em torno de um personagem chamado Sleazy-E [sleazy = esquálido, sórdido]. Dre Day mudou as tretas de hip-hop para sempre, jogou Tim Dog no ostracismo e apresentou ao mundo o termo “Frisco Dyke” [gíria para lésbicas da cidade de San Franscico; na música, Snoop Dogg usa o termo para se referir à mãe de Eazy-E].
  

#7. Canibus "2nd Round K.O." (1998)
Alvo: LL Cool J
Álbum: Can-I-Bus

Melhor trecho: Com raiva de mim porque eu representei naquela porra o sentimento real dos manos / Enquanto 99% de seus fãs usam salto alto.

Em 1997, o veterano LL Cool J convidou os mais promissores jovens do hip-hop para participarem da faixa 4, 3, 2, 1 do seu álbum Phenomenon. Após ouvir os versos iniciais do recém-chegado Canibus, LL pegou no seu pé na linha “L, isso é um microfone no seu braço, me empreste ele” (referência à tatuagem de um microfone no braço de LL) e insistiu para que ele reescrevesse o verso.

Canibus concordou e o revisou, mas quando a música foi lançada, os versos de Canibus foram removidos (ele só apareceu no remix) e LL Cool incluiu um trecho em que salienta a audácia de Canibus em pedir seu “microfone”.

Canibus estudou minuciosamente seu oponente e o respondeu com 2nd Round K.O., um dos melhores raps de treta de todos os tempos, com vocais de Mike Tyson. Ele atacou LL por ser admirado apenas por mulheres, por mentir a respeito da ideia de que seria um modelo exemplar livre das drogas, e por ser um MC inferior ao mudar seu verso em  4, 3, 2 1 depois de ouvir o que Canibus escreveu.
  
#8. Common "The Bitch In Yoo" (1996)
Alvo: Ice Cube
Álbum: Relativity Urban Assault
  
Melhor trecho: Hipócrita, eu estou assinando o seu atestado de óbito / criando gírias com torta de feijão e St. Ides na mesma frase.

Ao se ofender com a analogia de Common em I used to Love H.E.R., que inclui o trecho “Eu não ficava rabugento por ela estar com os caras da quebrada”, Ice Cube dedicou uma diss para o MC de Chicago na Westside Slaughterhouse de Mack 10, dizendo “Todos esses cuzões querem uma diss com o Pacífico, mas esses manos posudos nunca são específicos / Se costumava amar ela é porque nós fudemos com ela / Seu cachorrinho da mamãe, sem bom senso algum.”

Common rapidamente retaliou em The Bitch in Yoo, lembrando a Cube que não havia “pose” em Common e que ele era apoiado pela gangue de rua Four Corner Hustler. Disse que Cube era um gangsta ultrapassado que não fazia algo bom desde o Amerikkka’s Most Wanted e que agora se contentava com umas amostras grátis no grupo Westside Connection. A treta eventualmente foi encerrada quando o ministro Louis Farrakhan interveio e propôs a reconciliação entre os dois.
  
#9. LL Cool J "To Da Break Of Dawn" (1990)
Alvo: Ice T, MC Hammer, Kool Moe Dee
Álbum: Mama Said Knock You Out
  
Melhor trecho: Mas eu sou a bebida que você entorna com gelo / Enquanto aquela bizarrice que é seu álbum é algo inútil.

Durante a longa e bem-sucedida carreira de LL Cool J, muitos rappers tentaram e não conseguiram derrotar James Todd Smith no ringue. Em To da break of dawn, LL mirou seus detratores (Kool Moe Dee e Ice-T) e um espectador aparentemente inocente (MC Hammer), e matou três coelhos numa só cajadada. Dedicando uma parte pra cada alvo, LL ridicularizou Kool Moe Dee por usar óculos escuros estilo Star Trek, chamou MC Hammer de professor de ginástica e brincou em relação ao primeiro emprego de Ice-T num estacionamento. No final, LL saiu vitorioso contra todos os seus adversários, efetivamente esmagando Moe Dee, Hammer e uma namorada de Ice T.

Alvo: Entire Murder Inc. Roster, Ja Rule
Álbum: Get Rich Or Die Tryin'

Melhor trecho: Eu estou de volta ao jogo, nanico, pra governar e conquistar / Você canta pra vadias e soa como o Cookie Monster.

À época do lançamento do primeiro álbum de 50 cent, Get Rich or die tryin’, no início de 2003, a maioria dos fãs de hip-hop já tinha virado as costas para o outrora loucamente popular Ja Rule e passado para o lado do novo garoto do pedaço: Curtis Jackson.

Embora 50 cent tenha iniciado uma campanha de calúnias contra Ja Rule durante anos (já em Life’s on the line em 2000), incluindo hilárias esquetes e mixtapes, foi só em Back Down que 50 aplicou o verdadeiro nocaute. Os ataques de 50 deixaram a carreira de Ja em frangalhos e criaram um novo verbo para o glossário de tretas no hip hop: ser “Ja Rulado”. A disputa ainda está em andamento; 10 anos se passaram, e Ja ainda  está tentando recuperar o sucesso de outros tempos desfrutado.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Bling Ring, "cultura de marca", Hip-Hop, ostentação, autoafirmação


Se gosto não se discute, tudo bem, mas pode-se questionar – só pra saber como levar adiante um debate – que visão cada um tem das funções da arte, já que trata-se de algo mais objetivo. Qualquer mente sã sabe que a arte pode causar prazer, educar, manipular, estimular, politizar, deprimir, etc. Mas qual seria sua função primeira? Minha opinião: representar, o que quer que isso signifique. com todo e qualquer verbo possível do vernáculo como consequência

Em resumo (porque não entrarei nesse tópico por ora): para mim, não acho que eu deva desprezar o Emicida músico apenas porque o eu-lírico de Trepadeira é machista, mas sobretudo se eu julgar tal obra musicalmente ruim e incoerente (embora eu talvez possa desprezar o Emicida pessoa pela sua escolha em compô-la, dentro de um contexto e da proposta e postura política desse artista). Também não vejo porque parar de escutar Wilson Simonal por causa do seu suposto conluio com os ditadores; ou parar de ler Borges, por ele ter supostamente declarado que os negros não deram nenhuma contribuição artística efetiva para a humanidade. Certamente devo admitir que essa minha benévola visão, creio eu, é muito mais fácil de sustentar por eu não ser uma mulher e não saber uma sensação mais plena do que é ser chamado de “biscate” e merecer uma “surra de espada de são Jorge” ou um “chá de comigo ninguém pode” por ser uma “trepadeira”.

Mas, se Emicida errou em lançar a machista Trepadeira, Chico Buarque pode ter errado também em lançar músicas que estereotipam e limitam a mulher enquanto ser submisso, obcecado por paixonites enquanto única razão de viver, à mercê das fortalezas masculinas, atadas à frágil ilusão de que são fortes (O meu amor? Não sonho mais? Atrás da porta? Olhos nos olhos?). O senso-comum diz que Chico Buarque é o grande e definitivo representante da alma feminina na música brasileira – dá pra vislumbrar algo mais machista que isso? Sem querer parecer purista, mas por que o “grande representante” seria um homem?

Percebe-se, diante disso, como é delicado (e ainda mais nos dias que correm), falar sobre classes, etnias e gêneros historicamente oprimidos. O que dizer, então, do outro lado? Como diabos sentar para assistir a um filme chamado Amigas com dinheiro? O título – que, pasmem, foi traduzido corretamente – já dá um embrulho no estômago; e o longa, dirigido por Nicole Holofcener, nem sequer é uma sátira! Não! É apenas um retrato das angústias da classe média! O ímpeto em considerar esse filme uma bosta é quase irrefreável; a ânsia em julgá-lo irrelevante (tanta desgraça acontecendo no mundo!) e revoltar-se com o maldito “mimimi” de pessoas ricas (frescura!) é voraz. Porém, se anteriormente eu atribuí à arte uma função tão generosa, não seria digno trair-me: não posso dizer que Amigas com dinheiro é ruim só porque trata, com simpatia, de um tema supostamente insípido e ridículo. Para a minha sorte, contudo, tenho a atuação de Jennifer Aniston para criticar, bem como o grotesco e inverossímil final da trama... ufa!

As amigas: Joan Cusack, Jennifer Aniston,  Frances McDormand e Catherine Keener.

O novo filme de Sofia Coppola está imerso em contexto semelhante. Bling Ring – a gangue de Hollywood conta a história real de jovens que roubavam pertences de celebridades em suas casas. São elementos irresistíveis para desprezar sua realização: Hollywood, celebridades, vida fútil, consumismo, drogas, instagram. Claro está que a tentação nasce não dos elementos em si, mas por eles estarem representados sem, aparentemente, teor crítico, sátira ou caricatura. É um retrato curioso, íntimo e sem dramalhões – é de Sofia Coppola que estamos falando, caramba! É a valorização da sugestão, é o estímulo à auto-construção da ironia e da criticidade do espectador.  Quer algo mais honestamente artístico que isso? Reconheço que, em termos didáticos, sugestão e self-service crítico podem não ser tão efetivos (Picasso é mais "didático" que Miró?), mas, bolas, é o estilo da cineasta. O filme de Coppola tem sido atacado por retratar tal cenário sem uma visão crítica contundente (leia-se “visão crítica dada de bandeja, escarrada, no pior sentido Lars-von-Trierniano, Iñarrituniano ou Aronofskyano da coisa), mas, pelas boinas do Godard, é da diretora de Encontros e Desencontros que se trata! Para que raios ela vai fugir do princípio de representação crítico-artística dela para se adequar a um padrão que muito provavelmente ela despreza?

Emma Watson: o motivo real de 85% das pessoas que assistiram ou pretendem assistir Bling Ring.

Todos esses comentários, num blog sobre hip-hop, serviram de introdução para dizer que: a minha realidade atual é a do interior da Bahia, nordeste brasileiro, e já conversei com ou observei diversas pessoas de algumas partes do país (não todas), e devo dizer que, por ora, o Brasil tem uma cultura muito menos metonímica do que os EUA.

Bom, o que é “cultura metonímica”? 

Sabe aquela coisa de chamar toda esponja de aço de Bombril? Toda lâmina de barbear de Gillete? Todo doce em barra, seja de leite, coco ou amendoim, de cocada? Então. Mas enquanto aqui comprime-se todas as variações para um nome, lá nos EUA o processo se dá em sentido inverso. Tal síndrome, catapultada pelo capitalismo, fatalmente ganharia ares megalômanos no berço do imperialismo moderno. É a cultura da marca, alimentada pelo consumismo: quanto mais nomes de marcas soubermos, tanto melhor, e quanto mais dissermos “Estou de Calvin Klein branca” ao invés de “Estou de cueca branca”, mais apropriado será. Há quem reconheça, através de um áudio, se aquele saxofone é de Coltrane ou de Coleman Hawkins; há quem, ao comer um pouco de feijão, diga se tem sal, folha de louro ou pimenta do reino no tempero. Os jovens de Bling Ring reconhecem, só de olhar – e nem precisa ser tão perto a ponto de ver o logotipo –, se aquela bolsa é Louis Vuitton ou Alexander Mcqueen, se aquela bota é Louboutin ou sei lá que diabos.  

Como sofisticada e atenta cineasta que é, Coppola explorou uma trilha sonora que tivesse relação com essa realidade, e a escolha de várias canções do gênero hip-hop é certeira. A música dos créditos finais, Super Rich Kids, é tão fiel ao filme que parece ter sido feita pra ele, muito embora saibamos que o disco de Frank Ocean foi lançado antes. Temos também Kanye West, Rick Ross e Lil Wayne, dentre outros.


Um dos princípios do rap parece ser a liberdade em versar sobre muitas coisas, mas, mais especificamente falando, tratá-las com a familiaridade da referência e da metonímia. Se referir a um objeto pela marca dá a entender que você tem intimidade com ele. E o que estaria por trás dessa necessidade em demonstrar intimidade com tal produto? Enquanto o pessoal do Bling Ring idolatrava a vida das super estrelas, ao ponto de memorizar até mesmo em qual evento uma atriz usou o vestido X, na cultura hip-hop norte-americana, predominantemente negra, tornou-se comum referir-se às marcas para denotar uma tentativa, velada e explícita a um só tempo, de auto-afirmação e de manutenção de uma auto-estima historicamente esmagada pela classe dominante - na selva americana todos querem comprar, ter dinheiro. A compulsão dos “bling-ring” choca pela tal imbecilidade vazia da coisa, mas tão forte e rotineira por lá; a dos rappers, por sua vez, comove e até intriga: de onde eles tiram tanta força de vontade para se afirmarem no mundo, mesmo sendo tão massacrados e discriminados ao longo dos séculos? No subgênero gangsta rap isso é mais presente ainda - na verdade é uma regra. E aí voltamos à história de como apreciar Amigas com dinheiro: em variações como gangsta rap ou funk ostentação, temos muitas pessoas que não lhes julga artisticamente valiosos por causa de musicalidade/liricismo, mas também temos, acreditem, muitas, mas muitas e muitas pessoas que nem sequer os qualificam como música apenas porque suas letras falam de ter carros, jóias, mansões, comer putas e rebolar poderosamente para expulsar as recalcadas.


Aqui no Brasil a cultura da marca ainda está engatinhando. O primeiro grande “marcador” entre nós foi o carro: volta e meia alguns nomes são carimbados no nosso imaginário, como Hilux, Chevette, Corolla ou o famoso Fusquinha. Outros nomes recorrentes são Ray-ban (óculos escuros), Lacoste (camisa) e a mistura Red Bull com Red Label (bebidas). Uma marca que tem feito muito sucesso, em se falando de citações, é a Louis Vuitton, que ultrapassa as fronteiras do rap, chegando ao funk ostentação (Mr. Catra, MC Daleste) e ao forró (Aviões do Forró), ou ainda o pagode romântico (Thiaguinho). Talvez por nossa tradição com o futebol, a cultura de marcas de tênis é bem presente por aqui (claro que não tem nada a ver, mas sei lá). Não sei se no eixo Rio-São Paulo essa febre está em graus mais “avançados”, mas, pelo menos aqui em Feira, posso dizer que é incomum encontrar alguém de estilo metonímico, e há mesmo quem considere risível quando se encontra uma pessoa que saiba tantos nomes de marcas de roupas e acessórios (tenho um caso real disso, mas não posso citar nomes).

Ainda assim, dá pra perceber, em muitas dessas músicas nacionais, que, ainda que elas utilizem os nomes das marcas, estas não são inseridas de maneira “indiferente”, isto é: em geral, o uso desses nomes torna-se o mote da letra e delineia sua estruturação lírica. É o exemplo de Poderosa (Só bebe tequila e chandon na taça / Essa mina é chapa quente (...) / No pulso um alt brait / Ouro 18 quilates / Tem Armani, black blue o perfume é o 212) e As minas do kit (Se liga só no naipe dessas minas / forga de camaro, audi e capitiva / bota um Puma Disk no pé / que delicia de mulher / Tem Air max, Flack Jacket / tem lui lui, tambem tem Juliete / bolsa da Louis Vuitton, vermelho combina o batom), de Nego Blue; ou Pára Tudo (não sei de quem é, mas conheço na versão de Aviões do Forró): Só ando de Louis Vuitton / De Ray-ban ou de Triton / Sou vitrine de bacana / Com minha Dolce Gabanna / Na balada vou de Prada / Tô sempre descolada. Os nomes de marca não são adereços da letra, cujo tema central seria outro, mas o próprio tema. Como nos EUA o bicho já vem pegando há muito tempo, ninguém se dá ao trabalhar de pôr em primeiro plano nomes de marcas, porque o consumo já se tornou uma faculdade humana – as marcas estarão sempre lá,são tatuagens e cicatrizes.

A familiaridade é tanta que criam até apelidos e corruptelas para as marcas. Se aqui no Brasil, no século XXI, ainda pode parecer estranho falar apenas “Louis Vuitton” (em Mulher do Poder, por exemplo, Mc Pocahontas canta É salão de beleza, roupa de marca, sandália de grife no pé / Bolsa da Louis Vuitton, sonho de toda mulher – não só não escolhe uma marca de roupa ou de sandália para substituir justamente os termos “roupa” e “sandália”, como ainda, ao falar da Louis Vuitton, opta por manter o termo “bolsa”, ao qual “Louis Vuitton” deixa de ser objeto para tornar-se adjunto), lá, nos EUA, desde a década de 80 que eles se referem ao conhaque Hennessy como apenas – e carinhosamente – Henny. Ninguém lá chama Mercedes-Benz de Mercedes-Benz, mas apenas Benz. Nesse sentido, muitos dos raps do N.W.A., Snoop Dogg, Nas, Notorious B.I.G., Jay-Z, 50 cent, dentre outros, se aproximam da estética “Alegria Alegria”: eu tomei uma coca-cola, não um refrigerante, mas uma coca-cola, e a minha música não fala sobre a coca-cola, mas seu nome – sua marca – está lá.

The Nototious B.I.G.: um dos primeiros grandes ícones da imagem "rapper famoso e rico". Seu processo de autoafirmação - sou negro, sou gordo, sou feio, sou rico e sou foda - é de um carisma que continua insuperável.

Carros e roupas e bolsas são até naturais a nós, brasileiros; mas, e a cultura de armas, por exemplo, que lá sempre foi feroz? Se aqui eu sei no máximo o que é um Três-oitão ou uma 9mm, lá todos aprendem desde cedo a diferenciar uma Glock, uma AK-47, uma Beretta ou uma Mac-10. Você acha que um Camaro amarelo é o tal? E um Range Rover? Lexus GS3, Sentra, Jaguar, Bugatti, Hummer? Você vem de Louis Vuitton? Que tal Fendi, Burberry, Ralph Lauren, Hermes? Você ainda tá nos relógios à prova d´água da Casio? Putz! Eu só lhe dou um Rolex, um Seiko e um Hublot. Se você acha que entende de variedades de bebida ao dizer que gosta de "licor ou gim", eu não digo licor ou gim, eu digo Old English 800 ou Tanqueray.

Abaixo, traduzida, segue a música supracitada Super rich kids, retirada do site rapevolusom. Vale a pena conferir.