quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[resenha de mixtape] Caro Vapor / Vida e Veneno de Don L (Don L)



Em 24 de janeiro deste ano completou-se 10 anos de morte do maior rapper brasileiro de todos os tempos até então, Sabotage. A história do hip-hop no Brasil é recheada de vários nomes, mas, em termos de fenômeno – vendas, mídia, representatividade e/ou qualidade –, ela pode ser dividida, até então, em 1)Racionais MC’s 2)Gabriel O Pensador 3)Sabotage 4)Emicida/Criolo (muitos desconsiderariam o item 2).

O fato é que têm surgido cada vez mais nomes e produções de peso, e, consequentemente, a grande pergunta com certeza não deixará de ser feita: quem seria o mais promissor MC brasileiro surgido na era pós-Sabota? Emicida tem tudo para abocanhar o troféu; meu palpite, inicialmente, seria MC Marechal – até que eu conheci o som de Don L, e agora estou numa dúvida cruel.

Don L é um rapper de Fortaleza que surgiu numa banda chamada Costa a Costa. A mixtape da banda lançada em 2007, Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa, chamou bastante a atenção: era um “gangsta abrasileirado”, era um “’Sobrevivendo no Inferno’ mais infernal ainda”. Quando ouvi o hit Costa Rica, chamou-me a atenção o flow descolado deste MC, mas de um descolado que nunca ouvi em outro rapper daqui.

(Antes de dar seguimento ao texto, uma opinião mais respaldada que a minha: Daniel Ganjaman, que produziu Sabotage e Criolo, escreveu no seu facebook “Mixtape sensacional do Don L, o MC mais autêntico da atualidade. Gosto muito e recomendo!” – clique no link e comprove)

Autêntico, sim. E descolado. No sentido mais literal da palavra. Parece ter cola no seu flow – mas uma cola “descolada”. Sente-se a plasticidade da dicção, da pronúncia dos fonemas, o trabalho de alternância do tom, no qual mesmo o sussurro parece denso, cheio de polpa (na MPB brasileira só Jorge Ben canta desse jeito). O curioso é que nessa mixtape há uma faixa intitulada justamente Plástico. E em quase todas as faixas Don L utiliza autotune, recurso que dialoga contundentemente com seu flow.

O flow descolado (nesse sentido de “cola”, de deboche, tom superior, auto-estima vocal elevada à enésima potência) tem um pai: Jay-Z. E é certeza que Don L ouviu Jigga Man até não poder mais. Jay costuma explorar a densidade das vogais e das consoantes laterais (não à toa adora usar termos hispânicos, já que o espanhol é a língua que usa o L da maneira mais bela e sedutora). Don L (olha o “L” aí) também explora esse território e, além de Jay-Z, inspira-se na precisão diferenciada de Chico Buarque (ambos são influência confessa do rapper). Tal como Chico, a métrica de Don não é meramente linear – ela é circular, pois circula no todo lírico (tenham em mente Construção de Chico; aliás, qualquer uma de Chico). Poucas palavras são inseridas à toa nos versos – pensando bem, poucas sílabas. Exemplo: em Sangue é Champanhe, encontramos

Peça de marfim
Quadros raros tão requinte
E quando eu declaro tim-tim


Só ouvindo pra entender melhor, mas percebe-se aqui como, numa mesma palavra, a do 2º verso, ele aproveitou para rimar – com sílabas diferentes – com o 1º e o 3º verso, mantendo a rima maior que é a vogal “i” nasalizada.

Nos beats encontramos de tudo: rock, blues, jazz, slow jam, ritmos latinos, caribenhos, funk, soul. São estilos de vários lugares, de costa a costa. Esse é um rapper pra ficar de olho. E bem atento.



- - - - - FAIXA-A-FAIXA - - - - (baixe clicando aqui)

1) Morra bem, viva rápido

Eu vi a modelo sorrindo pra mim
O outdoor brilha
Cê não entende a fita ?
Nós tudo vive pra morrer mas luta pela vida

Tem gente declarando por aí no twitter que ainda não conseguiu ouvir a mixtape toda porque sequer consegue deixar de ouvir essa faixa. De fato, a melhor opção para introduzir esse trabalho. Muitos rappers – sobretudo os autênticos – costumam criar um mundo lírico próprio, afinal é basicamente a partir disso que se faz um flow. Um dos primeiros MCs a popularizar essa estética foi Snoop Dogg: uma de suas marcas registradas é soletrar nomes próprios (principalmente o dele, é claro) – S-N-O-O-P D-O-G-G (leia-se “S, N, Double O,P, D, O, Double G”). 

Em Don L temos marcas lexicais; volta e meia, nas letras, encontrar-se-ão termos como o verbo filma! (no imperativo, com exclamação), ou a frase nós contra o mundo (referência à “me against the world” de Tupac), ou plástico, ou gelo, ou denso. O colega Ederval chamaria isso de ressonância mnemônica.

2) Chips

Respira sem stress
Porque de cem, da vida, cê num entende nem dez
Ri do perigo comigo, cola minha hashtag
#foda-se

Uma estrutura que Don L costuma utilizar, e que não é muito usual na tradição do rap, é o refrão longo. A estrutura mais comum é a Verso 1 > Refrão (quatro versos) > Verso 2 > Refrão > Verso 3 > Refrão; volta e meia encontram-se refrões de 8 versos, mas em Don L muitos têm 12 e até 16 versos. E, muitas vezes, um Verso só [NOTA: para não confundir, o Verso com V maiúsculo se refere à estrutura musical, ao passo que o verso com v minúsculo se refere às linhas].

Curiosamente, há um rapper atual nos EUA trabalhando assim também, e que está bombando lá fora, que é o Kendrick Lamar (e eles até se assemelham, já que Kendrick também é da escola de Jay-Z). Mais curiosamente ainda: o flow em Chips dialoga com o de Bitch don’t kill my vibe, hit de Lamar.

3) Rolê dos loko

Eu num vim aumentar o drama, vim virar o jogo 
Eu nunca tive autorama, xeu brincar um pouco
Na pista real dos loko, com meus brinquedo novo

Quem produziu essa faixa foi a dupla Stereodubs, os mesmos caras que trabalharam com Flora Matos. Mais uma faixa na estrutura Refrão > Verso único > Refrão. Um som com uma pegada mais eletrônica, com um flow recheado de precisão e deboche. Não sei por qual motivo Don batizou a si próprio com tal apelido – Don L – mas, se tem alguma coisa a ver com a sonoridade da letra L, faz sentido, porque a maneira “cremosa” e fluida com que ele pronuncia essa consoante é realmente chamativa.

4) Doce dose

John Lennon vivo no caixão 
E o amor morto
Doses de ilusão, Yoko
Olha o que é ser leão no jogo
Pôr animais em extinção no bolso
Predadores tão a solto

Um blues-rock com participação de Felipe Cazaux, músico paulista radicado em Fortaleza. O estilo “ostentação requintada” segue firme. O hedonismo do eu-lírico de Don é descolado como seu flow e, por mais que a ideia de ostentação remeta à noção de “viver o presente de maneira inconseqüente”, neste caso temos uma peculiar postura do que poderia ser chamado de “ostentação diacrônica” ou “ostentação dialética”, pois o diálogo com o passado do sujeito jamais deve morrer.

Essa, na verdade, é quase uma regra entre os rappers (que tem sido muito distorcida no senso comum com a associação à suposta “pegada vazia e ordinária” do funk ostentação): tô na fama, e eu a desejei, mas tô com o pé no chão; tô rico, e eu corri atrás disso, mas não mudei. Kendrick de novo, em Now or never: A fool if I take it all for granted / A smart man if I keep my feet planted [Um tolo se eu virar as costas pra tudo isso / Um cara esperto se eu manter meus pés plantados].

5) No melhor estilo

Bota um drink do melhor no gelo prum dos melhores dos MCs 
Um trago de green pelas batalha que eu venci
Não batalha de free, nem tempo eu tive
De onde eu vim, cena do rap é a cena do crime

Rap no melhor estilo gangsta. Com beat de Papatinho da Cone Crew e participação de Terra Preta, Don L segue com suas referências indiretas aos seus mestres, ora claras ora sutis, seja 2pac (pra eu chegar assim, Maquiavélico – um dos nomes artísticos de 2pac era Makaveli), seja o trocadilho com a bebida Ice Tea e o rapper Ice-T.

Rappers costumam rimar em cima de nomes próprios e, é claro, nomes de marcas, em geral da cultura de massa. Há décadas atrás o Brasil ficava chocado com a rima de Caetano em Alegria Alegria: coca-cola com escola. Don L gosta muito de utilizar esse recurso (aqui temos “Miami” com “me ame”; na anterior temos “Yoko” com “morto”; mais tarde encontraremos “Coltrane” com “oh, quem...”).

6) Depois das 3

Ô, o que ela tem nesse olhos 
Que me lembra o que nem vivi
Tipo Ipanema em setenta
A gente contempla um transatlântico
Eu transo um som romântico, pornô, meio transa tântrica

E por falar em Caetano, o jogo de palavras e rimas no trecho acima é bem caetanístico. O refrão é cantado por Izabel Shamylla, outra cantora da cena local de Fortaleza. Um rap suave, com flow destilado também de maneira suave. Uma das minhas prediletas.

7) Plástico

Nove da manhã 
A casa de cabeça pra baixo
A sandália dela no quarto
Aquela da alça de plástico
Embalagens de aperitivo barato
Junto com a garrafa de vinho caro
De uma safra noventa e quatro

A música mais “autotuneada” da mixtape, com um beat provocativo. O romântico Don nunca é obsessivo, nunca é desesperado, o que causa um efeito de elegância: algo declaradamente intenso sendo retratado com equilíbrio. É a velha distinção entre erotismo e pornografia.

8) Me faz acreditar

Então esqueço o sonho que acordei me lembrando 
Pra lembrar dos sonhos que já tenho há vários anos
Quanto tempo eu tenho pra correr e a quanto?

Uma pequena faixa inserida no meio da mixtape com uma base instrumental completamente inesperada - flauta doce e percussões idílicas, na pegada Milton Nascimento – e letra igualmente inesperada. O refrão simplesmente é: Bom dia, muito obrigado! / Me faz acreditar!

9)  Slow Jam

A vida é fumaça, prima 
Se perde na brisa do ar se num tragar a fita
Escolho contigo o lugar pra te levar, firma?

Uma slow jam com batida de bossa nova gingada. Ao final, um aconchegante fraseado de metal.

10) Beira da piscina remix

A gente ouvia um blues no opala oito sete 
Mi casa era su…
Só mudou o CEP
Okay, mudei a placa
Mudei o carro
Mudei marca

Mas eu, num mudei nada

Beira da piscina é uma música do Emicida que conta com vocais de Rael da Rima no refrão. Esse remix é um bom exemplo da lírica circular que ele aprendeu com o mestre Chico. No trecho abaixo, temos:

A vista é bem louca hein, tem que respeitar / Ó, uvas na boca, flores jasmim
As curvas tão lindas, doggy style pra mim
E nada além disso / Ou talvez sim
Um brinco em safira
pro sol refletir


Ao ouvir essa parte, podemos perceber como ele mantém a métrica no tempo de 4/4 até introduzir o termo inglês “doggy style” (referência a Snoop Dogg) em tempo de 3/4, e, daí, canta os seguintes versos, destacados em vermelho, também nesse tempo, muito embora – faça o teste – eles caibam perfeitamente no tempo 4/4. Depois, finaliza o fragmento voltando ao 4/4 para encerrar o compasso, com a voz também “encerrada” (isto é, baixando o tom). Como em Chico, cada momento métrico da letra de Don precisa estar concatenado, para denotar a ideia de corpo lírico redondo.

11) Nem posso dizer

De tanto querer ser bom 
Misturei o céu e a terra
E por uma coisa à toa
Levei meus anjos à guerra

Os versos acima são de Cecília Meirelles – esta é a introdução da música. Se alguém não conseguiu ainda visualizar os ensinamentos do papai Jigga, eis talvez o melhor exemplo.

12) Caro Vapor

Uma noite tem que valer um verso, 
pra em outro dia, o verso valer a noite
A estrada já tem que valer a viagem 
porque o destino é sempre incerto

Aqui já podemos sentir o peso do maldito Kanye West, o maior beatmaker/produtor de hip-hop em atividade, além de grande rapper (resumindo: gênio). Pra brilhar como MC tem que ter auto-estima: E se eu não for seu rapper favorito / Eu provavelmente sou o favorito do seu favorito.

13) Denso

Hey chapa, essa gata ao meu lado é a ressurreição 
De Joana d’Arc cobrando pela Inquisição

Aqui Don L apresenta seus dois anjinhos da consciência: o primeiro, numa voz feminina sedutora e traiçoeira, é a Vida Premium, a qual o eu-lírico tanto deseja; o segundo é Nego Sub, que, com seu efeito de voz grave, alerta para Don que o preço é caro. Em dado momento, a voz da Vida Premium, para ganhar a treta com Nego Sub, alardeia: Olha como eu tô foda! Olha como eu tô foda!” (não sei o porquê, mas “tô” ao invés de “sou” realmente causa um impacto maior).

14) Cafetina seu mundo

Vô na malandragem, não na sorte 
Porque eu sempre soube quem matou Pixote

Já lançada como single antes, essa causou problemas de natureza autoral a Don, pois ele sampleou a música Everlasting Night do Black Keys. Ainda que tenha creditado, os donos dos direitos não quiseram nem saber e depois de algum tempo a música tinha sido excluída do youtube, sound cloud e sites afins. Rock com autotune.

15) Sangue é champanhe

A vida que pulsou forte 
Quando ela me apresentou a dose
Seduziu de lingerie tipo: Oh, fode!
Hotel unreal
Motel no love
Estourei champagne nela tipo blowjob

Essa fantástica música, com belo arranjo vocal de Flora Matos no refrão, é a única da mixtape que, até então, já tem videoclipe. E que videoclipe. Se você não gostou do estilo de Don L, ou se você sequer gosta de hip-hop, dê uma chance pelo menos a esse grande trabalho artístico. Dirigido por Erica Gonsales em parceria com a fotógrafa Autumn Sonnichsen (que já fez ensaios para Playboy, Trip), o vídeo mostra uma visão diferenciada e sensível da nudez feminina. [DE FATO, AVISO: NÃO RECOMENDADO PARA MENORES DE 18 ANOS, O VIDEO CONTÉM CENAS DE NUDEZ]


16) Gasolina e Fósforo

Ei, Don ! Cê é bicho solto, hein! 
Não! Só disposto e em posto e em
Ponto pra queda ou pro vôo e em
Guerra e amor, cê vem?

Essa é uma das mais pesadas da mixtape. O personagem Nego Sub retorna para guiar Don e pô-lo em foco. Nego Gallo, integrante da banda Costa a Costa, também faz uma participação especial.

17) Enquanto acaba

E pelo espelho vejo: que bonito 
E depois do amor jogos de criança tipo
Adedonha
Nome de lugar
B! Barcelona!

Outra com participação de Flora Matos, e outra cujo clipe a ser gravado pode ser realizado pelas mãos milagrosas de Autumn Sonnichsen (em parceria também com Erica Gonsales). Um jazz para encerrar a mixtape cujo verso inicial é “O mundo jaz”.

8 comentários:

  1. Boa!! continue fazendo resenhas assim!

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  2. amei, achei foda tuas análises. e só pra constar, tanto o clipe de sangue é champanhe quanto o projeto pra Enquanto o Mundo Acaba é uma parceria da Autumn com Erica Gonsales. Abs!

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    1. tens razão. por alguma razão me confundi, e, lá no vimeo, achei que E. Gonsales tinha apenas feito o upload do vídeo. vou acrescentar a informação ao texto.

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  3. Don L é simplesmente FODA, viciante to parado em 2 músicas.

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  4. Bela análise do disco, Parabéns ai olhar clínico !!!

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