Em geral, a característica fundamental de um rap é a letra extensa, seja no formato storyteller, seja enquanto mensagem política ou poética, ou ainda tudo junto e misturado. Pela lógica, poderíamos acreditar que, ora, se um rapper tem à sua disposição uma estrutura lírica que permite a inserção de vários versos, naturalmente ele terá espaço para divulgar sua mensagem, para esmiuçar as metáforas, para explicar e exemplificar direitinho o que ele tem a dizer e não deixar nada de fora. Mas, como estilo multifocal e plurilíngüe que é, o rap não precisa necessariamente seguir essa regra.
Muitos rappers gostam de
trabalhar seus flows de maneira sintética e elíptica. Rakim, como sempre o pai
de todos, nos ensinou de maneira exemplar como a métrica é uma espécie de
quebra-cabeça, durante o desenvolvimento da qual temos a possibilidade de
inserir/retirar inúmeras variações. Esse processo é até natural na música
popular. Falo de quebra silábica, de prolongamento de vogais, aglutinações
imprevisíveis; mas a cultura musical do Brasil sempre foi familiarizada com a chamada
“métrica perfeita” (que eu carinhosamente chamo de “A maldição de Chico Buarque”).
Nós não estamos tão acostumados com isso, mas se você for ouvir uma canção
portuguesa – já que estamos falando do nosso idioma – verá que é comum. Se eu
canto aqui no Brasil “Cristiano Ronaldo é melhor do que Messi” o verso precisa começar
em “Cristiano” e terminar em “Messi”, porque, semanticamente, começam e
terminam exatamente aí. Em outros lugares, é comum que o primeiro verso termine
em “que” e o segundo comece com “Messi”, para terminar com alguma palavra que
rime com “que”, se for o caso. Nesse sentido, sinto até constrangimento ao ver
como Tom Zé é um estranho no ninho na MPB.
No rap, essa estética é potencializada,
até por motivos óbvios. Você tem, por definição, um espaço amplo para criar sua
letra e uma velocidade de execução igualmente ampla para inserir um grande
número de palavras. Por isso, é fascinante como muitos rappers aproveitam um
princípio já verborrágico para amplificar ainda mais essa enxurrada lírica.
Dentre os inúmeros casos, falarei brevemente do rapper Shawlin, o MC Shaw, cujo
flow me chama a atenção.
Shaw é carioca e foi responsável,
junto com nomes como De Leve e Marechal (ver sobre coletivo Quinto Andar), por trazer
à tona a qualidade do rap carioca no século XXI. Em seu álbum Orquestra Simbólica, a verve conceitual
do disco dialoga com o dia-a-dia do MC: “Na minha ocupação durante o dia, no
meu emprego Clark Kent, eu sou engenheiro de áudio e trabalho com restauração
do acervo russo de música clássica. Trabalhei inclusive para a Biscoito Fino
aqui do Brasil e para a Brilliant Classics, lá da Holanda.”, afirmou, numa entrevista. Nesse álbum, a “sintetização lírica” de Shaw é constatada no seu
uso certeiro de ditos populares e de forte carga memética (genial trocadilho com o termo “meme”, acabei de inventar).
A junção elíptica dessas frases com os jargões da cultura hip-hop e/ou de
periferia cria esse acúmulo semântico que alicerça a filosofia do “para bom
entendedor meia palavra basta”.
Na faixa O Mago, por exemplo, o rapper canta:
Mais que a morte, / Eu vou gravar na sua lembrança,
Que a sua realidade é um sonho, / Sonhado por quem alcança,
Sumi com o certo e o errado, / Mas te deixei a balança,
Vi a nossa história e mostro / O que é justiça e o que é vingança,
Temos nossas diferenças, / Ressaltei a semelhança,
Um dia nós vamos lutar juntos, / Eu celebrei nossa aliança.
Fica claro que a “balança” do
sexto verso é a famosa “balança da justiça” (a música toda fala de dualidades e
contradições); o adjunto é suprimido, não só para manter a rima, mas para despertar
no ouvinte seu imaginário e ele mesmo pressupor do que se trata (característica
muito forte no rap, bem como as referências à cultura de massa); e, mais do que
isso, o termo é posto adiante, justamente de maneira crítica (como falei, esse rap trata disso): o que seria, de fato, justiça? Mais adiante, percebam como no
verso “Ressaltei a semelhança” é suprimido uma conjunção – é uma questão de
flow e tudo, etc., mas o que está por trás disso? Qual seria a nossa escolha
óbvia? A conjunção mas: temos nossas
diferenças, mas ressaltei a semelhança.
Shaw, ao excluir o “mas”, mostra que não é preciso ter para si a ideia de que
opostos seriam, por lei, auto-excludentes ou autodestrutivos, muito embora o tal
mundo cruel sempre tente nos convencer disso. Por que o ato de ressaltar a
semelhança perante as diferenças deveria vir precedido de uma conjunção de
adversidade? Não necessariamente, diz
Shaw.
Os dois últimos versos também
reforçam a visão de mundo dual do eu lírico. Ao mesmo tempo em que prevê um
momento futuro, o mago celebra a aliança no tempo pretérito.
Vamos agora a alguns exemplos
mais visíveis do uso de expressões populares e meméticas. Na faixa Homem é crescer, temos:
O tempo livre? É só sangue e suor / Não mais jogando War!
Minha paciência ficou bem pior / Sem revolta ou dó
Então extravaso com uma cerva / Na sueca ou dominó
Nas minhas contas eu dou um jeito / Nos pelas, eu dou um nó
Não mais pago de gostosão / Deixo pra quem tem pau menor
Já que encontrei minha alma gêmea / Então não mais largado e só
“Dar um jeito” é uma expressão
típica e creio que até idiomática. É mais difícil identificar expressões
idiomáticas que não contenham nenhuma gíria, mas elas existem. E o que Shaw
explora bem é a junção destas – as sem gíria – com aquelas – as com gírias. E
às vezes misturando um termo de uma, noutra. Se no verso “nas minhas contas dou
um jeito” não há gíria alguma, no seguinte “nos pelas, eu dou um nó” há duas;
inclusive, novamente aqui temos o movimento elíptico, que condiciona o ouvinte
a explorar seu imaginário lingüístico (ou ficar boiando, caso não conheça): os “pelas”
são, no caso, os famosos “pela-saco”.
Assim como em O mago, o diálogo entre os versos é
notável, muitas vezes entre as próprias palavras: se no verso “Nas minhas
contas eu dou um jeito” fica subentendida a óbvia ideia de que uma conta existe
para ser paga e de que Shaw suprime, por questões de métrica, o termo “pagar”
(pela lógica seria “nas minhas contas eu dou um jeito de pagar”), logo em seguida
ele retoma o termo sublimado, não mais no sentido padrão, mas como gíria. É o
verso “não mais pago de gostosão”, e o jargão, no caso, é “pagar de”, ou seja:
fingir que é algo, forçar a barra em relação à sua personalidade, à sua
postura, etc.
Interessante observar também que,
no último verso, pela lógica lingüística, Shaw poderia escrever “Não estou mais
largado e só”, já que a oração pede um verbo, mas, para manter a unidade
sintática da estrofe, onde ele afirma “não mais jogando War” e depois “não mais
pago de gostosão”, o rapper mantém o uso do “não mais” e elimina o verbo.
Muitas vezes Shaw utiliza as
elipses para demonstrar efetivamente o vazio e a efemeridade de certos aspectos
da vida. Nos versos abaixo,
Viver de gozolândia / Pode ser arriscado
Querer fazer algo irado / Subir a avenida pirado
E eu ver o seu carro blindado / Numa esquina virado
Morre você, sua mina / E esses bundão do teu lado
A “rapidez” sintética com que
o rapper passa sua mensagem condiz com o fato de que um acidente na estrada
pode ser um momento rápido, chocante e inesperado. Num único termo – blindado – pressupõe-se a classe social
desses sujeitos no carro.
Outro exemplo é o rap Coração:
Enquanto me mostravam o chão, eu e muitos miravam o céu
Passam-se anos, num me admiro de tantos virarem réus!
Tu faz seus planos, mas comete um engano e a vida créu
Ao utilizar a expressão “e a
vida créu”, que por si só já é sintética e até paradigmática, Shaw nos mostra
como, de repente, por uma besteira, por um quase-nada, tudo pode ruir. Ou seja:
A vida créu é uma frase curta, rápida
e certeira, quase fantasmagórica, exatamente
como em geral é o momento em que um ínfimo deslize do sujeito pode pôr tudo a
perder.
Como último exemplo de elipse,
vemos na faixa A saga um exemplo de
solução léxica de Shaw para manter a rima:
No perrengue e na correria
Acredite amanhã é outro dia / Lembre-se sua cabeça seu guia
Ter um emprego que te pague bem / Um pra mim também
Uma mina que nos ame com / E nos ame sem
Falo dos dois últimos versos.
Naturalmente, o “com” e o “sem” representam a condição financeira do sujeito.
Atualmente, os nomes mais comentados do novíssimo rap têm sido Emicida, Cone Crew Diretoria, Projota, etc. Shawlin também já tem uma boa visibilidade, embora não tanto quanto a dos citados anteriormente. É um rapper promissor, que iniciou sua carreira com apenas 15 anos, e que pode gerar ótimos frutos. O álbum Orquestra Simbólica, de 2012, é, como se diz no jargão típico, um disco de responsa.
Parabéns João! Ótimo texto! Sou fã de Shawlin há 2 anos e, para mim, o som dele é superior. Beat de qualidade, flow de qualidade e, principalmente, mensagem de qualidade. Grande Shawlin!! Que ele viva até 100 anos usando seu dom!
ResponderExcluirGrato, André. De fato, o cara é alto nível - vida longa a ele.
ExcluirMuito bom mano, otimo texto!!
ResponderExcluirshawlin nojeeeeeeeeento